segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Para acabar com a celeuma em torno dos livros de Monteiro Lobato


Por Milena Ribeiro Martins

CARTA ABERTA à Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC), especialmente à COGEAM e às demais pessoas e instituições envolvidas no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE):

Sou professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná, tenho atividade docente e produção bibliográfica na área de formação de leitores, dentre as quais alguns materiais didáticos produzidos para o MEC: sou coautora do livro Histórias e histórias: Guia do usuário do Programa Nacional Biblioteca da Escola (SEB/MEC, 2001), do fascículo Organização e uso da biblioteca escolar e das salas de leitura (MEC, 2005) e do artigo “Experiências de leitura no contexto escolar”, da coleção Explorando o Ensino (Literatura: Ensino Fundamental, SEB/MEC, 2010). E, também, sou autora e orientadora de pesquisas relevantes sobre a obra de Monteiro Lobato.
Considero da maior importância cultural e social os programas para formação de leitores e de acervos desenvolvidos pelo MEC e só posso esperar que programas desse gênero tenham continuidade, força política e crédito social.

Escrevo esta carta aberta porque estou consternada com a representação recentemente apresentada contra o livro Negrinha, de Monteiro Lobato, livro que não é racista, nem tampouco sexista. O conto que dá nome ao livro desperta um sentimento de angústia diante do sofrimento vivido por Negrinha, e desperta também uma forte reação contra práticas racistas, discriminatórias e violentas. Hoje dei duas entrevistas a esse respeito na mídia. Mas as condições de debate na mídia não têm sido as mais adequadas para desenvolvimento aprofundado de ideias.

Peço licença para apresentar algumas considerações sobre um pequeno trecho do edital do PNBE (citado pelos senhores Costa Neto, Domingues e Santos Júnior), que a meu ver mereceria uma discussão interna na SEB com vistas à sua reescrita. E, dada a repercussão na mídia, creio que mereceria também uma manifestação pública.

O trecho a que me refiro é este, que copio do edital do PNBE-2013: “Não serão selecionadas obras que apresentem moralismos, preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem.” (Destaquei palavras que pretendo comentar.)

Creio, pela minha experiência docente, especialmente no trabalho com formação de leitores, que a compreensão dessa frase pelos que estão envolvidos com o PNBE é diferente da sua compreensão pelos senhores que assinaram a representação.

Permitam-me dizer o que pode ser óbvio: a construção de personagens em obras ficcionais se faz muitas vezes por meio de estereótipos. Arrisco dizer que toda obra cômica faz isso. E também que boa parte dos personagens secundários, de obras boas e ruins, são construídos por meio de estereótipos, porque são personagens planos, sem densidade, apresentados por meio de poucos elementos, de traços rápidos. Estereótipos não são um elemento negativo de uma obra. São, sim, elemento constitutivo da produção ficcional.
Creio que os responsáveis pelo PNBE também pensem assim e por isso tenham selecionado (nas diferentes edições do programa) obras que contêm, sim, personagens contruídas por meio de estereótipos, sem que isso signifique demérito para as obras, nem tampouco flexibilidade no julgamento da equipe que seleciona os livros.

Além disso, obras literárias de alta qualidade podem apresentar (e em geral apresentam) moralismos, preconceito e discriminação. As obras são filhas de seu tempo, são impregnadas pela ideologia e pelos valores da época em que foram escritas, e carregam esses valores de maneira explícita e implícita. Apresentam moralismos, preconceito e discriminação sob a forma de ideias de personagens, sobretudo. Apresentam, isto é, trazem em seu corpo, ideias diferentes das de hoje.

Discutem essas ideias, solicitam do leitor um posicionamento, instigam o leitor a refletir. E refletir é o papel principal do leitor diante de um texto.
Apresentar uma ideologia não significa (na minha compreensão do texto do edital) plantá-la como verdade nas mentes dos seus leitores. Significa trazê-la no texto, impregnada no modo como o narrador ou as personagens concebem o mundo, e, dessa forma, trazê-la para discussão, debate, reflexão. Uma obra apresenta moralismos quando coloca no diálogo entre personagens uma discussão sobre valores morais, ou religiosos, ou políticos. Suponho que o MEC não tenha sugerido que não fossem adotadas obras que discutissem ideias, mesmo quando elas fossem contrárias ao senso comum e aos valores de hoje. Suponho, isso sim, que o edital tenha tentado excluir do programa obras que fossem dogmáticas, que tivessem como primeiro objetivo a expressão de valores (morais, políticos, religiosos) e que apresentassem discussão desses valores por meio de uma trama ficcional ou de uma estrutura poética insustentáveis.

Não me parece que tenha sido essa a compreensão dos senhores que assinaram a representação. Além de outros problemas de leitura (que me fazem supor que eles não tenham lido o conto inteiro, mas tenham pinçado pedaços que, fora do texto, podem parecer adequados aos seus propósitos), eles julgam que o conto “Negrinha” apresenta preconceito, e isso só é verdade no seguinte sentido: a personagem Inácia é preconceituosa. Para além disso, o conto não dissemina preconceito. Pelo contrário: ele denuncia a discriminação, os maus-tratos, a violência, a conivência da igreja, e luta contra tudo isso, ao estimular a identificação e o envolvimento emocional do leitor com a personagem principal. Inácia, por sua vez, é ridicularizada, clara e ostensivamente. Suas atitudes e suas ideias são desmerecidas também de maneira clara e ostensiva.

Uma certa leitura do edital (a que fizeram os reclamantes) entende que não poderia ser adquirida pelo programa nenhuma obra que contivesse qualquer moralismo ou estereótipo, ou que apresentasse, em sua trama, qualquer ideia racista, preconceituosa, qualquer violência, qualquer forma de discriminação.
Por essa leitura, estariam excluídos todos os contos de fadas, por serem violentos e moralistas. Todas as fábulas: moralistas e dogmáticas. As cartas de viajantes e sermões de jesuítas: dogmáticos, política e religiosamente interessados. Estariam excluídas todas as obras realistas, porque, para denunciarem problemas sociais (dentre os quais diferentes formas de discriminação), elas antes os apresentam. Estariam excluídas todas as obras românticas, por apresentarem “estereótipos saturados” (outro termo do mesmo edital). Gregório de Matos, José de Alencar, Visconde de Taunay, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Erico Verissimo, Antônio Callado, Rubem Fonseca, a lista é extensa.
Não sei se ficaria um autor em pé.

Infelizmente, parece-me que a compreensão estrita do edital permite essa interpretação.

Sugiro, por isso, que esse trecho seja reescrito, não para dirigir o trabalho dos especialistas, não para mudar as diretrizes do MEC, mas a fim de evitar ações que, fundadas numa compreensão equivocada dos efeitos da literatura sobre os leitores, ajam como censoras do que pode ou não pode ser integrado ao acervo das bibliotecas escolares, pretendendo inclusive substituir-se à avaliação de uma equipe da mais alta qualidade.

Não creio, porém, que com a revisão do edital o MEC acabará com a celeuma, dentre outros motivos porque celeuma dá visibilidade, populariza os nomes das pessoas. Mas creio que tiraria das mãos dos reclamantes um texto legal que eles começaram a usar como argumento para sua ação.

Talvez eu esteja dando valor demais para um ato de menor importância. Tomara que seja isso.

Tenho esperança de que nós, professores, teremos liberdade e acervo suficiente para continuarmos a discutir nas escolas e na sociedade obras literárias de qualidade, por meio das quais compreenderemos melhor nossa identidade, nossas contradições, nossos problemas históricos.
Compreender problemas é condição para superá-los.

Atenciosamente,


Milena Ribeiro Martins


Curitiba, 27 de setembro de 2012.

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